(Foto: Divulgação/Olavo Rosa) 

Com apoio do CCBA, evento aconteceu no Porto Digital e reuniu audiodescritores do Brasil, Estados Unidos e outras partes da Europa

Você sabia que pessoas com deficiência visual assistem filmes, veem peças, espetáculos e exposições de arte através das palavras? Essa forma de “traduzir” verbalmente o que está acontecendo visualmente é chamada de audiodescrição. Os responsáveis por transformar as imagens em palavras são os audiodescritores, que permitem a inclusão de pessoas com deficiência visual nos diversos campos da cultura. Também participam do processo de criação desse recurso outros profissionais, como os roteiristas e consultores. Em busca de ampliar as discussões sobre o tema e aproximar esses profissionais, aconteceu, no Recife, o 3º Encontro (Inter)Nacional de Audiodescrição, no Porto Digital. Entre 26 e 29 de abril, profissionais especializados em audiodescrição no Brasil, França, Alemanha, EUA e Portugal trocaram experiências e abordaram as demandas do mercado de trabalho para audiodescritores, roteiristas, narradores e consultores.

Organizado pelas audiodescritoras Liliana Tavares, da COM Comunicação, e Lívia Motta, da Ver Com Palavras, o encontro contou também com uma programação pré-evento três dias antes da abertura oficial, onde foram realizadas oficinas com grandes nomes da audiodescrição nacional e internacional. Com o apoio do CCBA, o workshop “Quando Imagens Se Tornam Palavras: O Modo Alemão De Audiodescrever” marcou os primeiros dias de pré-evento. Ministrada pelo alemão Bernd Benecke, Doutor pela Universidade de Saarland, a oficina apresentou os princípios da audiodescrição na Alemanha tanto para a TV como para o cinema, ilustrados por cenas audiodescritas e exercícios para a aplicação prática desses princípios.

Pioneiro na audiodescrição na Alemanha, o Dr. Bernd Benecke é o coordenador de audiodescrição na emissora de televisão bávara Bayerischer Rundfunk (BR). Começou sua carreira na audiodescrição em 1989, quando o primeiro filme audiodescrito foi lançado na Alemanha.  Trabalhou como roteirista e narrador para distribuidoras e vários canais de televisão até 1997, quando ingressou na BR, onde fundou o departamento de audiodescrição da emissora. Atualmente ele treina roteiristas, revisa roteiros e dirige a narração e o processo de mixagem de som. Ministrou oficinas em vários países (Espanha, Portugal, África do Sul e Brasil) e é um dos autores do Guia da Audiodescrição Alemã. É também autor de Audiodeskription als partielle Translation – Modell und Methode, (Audiodescrição como tradução parcial – Modelo e Método, Lit Verlag 2014), resultado de seu doutorado na Universidade de Saarland. 

(Foto: Divulgação/Olavo Rosa) 

O workshop contou com a tradução de Eliana Franco, doutora em Letras pela universidade KU Leven, na Bélgica. Eliana é especialista em tradução audiovisual e acessibilidade. Criou a empresa Franco Acesso em 2016, que estreou com projeto de acessibilização em parceria com o Oi Futuro Flamengo. “Tenho uma afinidade muito grande com a Alemanha, ela foi muito importante pra mim. Em 2004, participei de um congresso de tradução audiovisual onde estava sendo oferecida uma oficina de audiodescrição com o Bernd Benecke. Eu ainda não o conhecia, mas ele já era um grande profissional. Fiz a oficina e me apaixonei pelo tema, porque eu já tinha uma formação em tradução audiovisual com legendagem e dublagem. Ele me introduziu à audiodescrição e me apaixonei mesmo”, contou Eliana ao CCBA. “Acho que o conteúdo do Bernd foi o que mais teve a ver comigo, eu o passo e repasso nos treinos que eu dou. Cheguei a visitar até a emissora bávara onde ele trabalha e ele foi muito aberto e acessível para que eu conhecesse esse trabalho de perto. Desde então, me dedico a esse assunto e continuo visitando a Alemanha para entender ainda mais a audiodescrição que acontece por lá”, disse a especialista da Franco Acesso, que é paulistana e vive atualmente entre o Brasil e a Alemanha. 

O MODO ALEMÃO DE AUDIODESCREVER: O QUE FAZER E O QUE EVITAR

(Foto: Divulgação/Olavo Rosa)

Na oficina, o Dr. Bernd exibiu a primeira cena de um episódio da série policial alemã/austríaca/suíça Tatort e, como um dos exercícios, pediu para que aquela cena fosse audiotranscrita. Após a exibição do resultado dos trabalhos, o especialista fez considerações sobre os princípios alemães da audiodescrição:

“É importante (o audiodescritor) não resumir ações nem interpretar o que acontece. Deixe que as pessoas que estão ouvindo o façam”, afirmou Benecke.

Segundo ele, a interpretação e a leitura do audiodescritor podem influenciar na narração. Por isso, deve-se tomar cuidado com as descrições de expressões faciais. De acordo com Benecke, há um debate sobre a subjetividade na hora de narrar emoções. “A forma que cada um vê e descreve emoções pode ser diferente”, lembrou o audiodescritor.

Não dar informações atrasadas ou adiantadas também é muito importante, principalmente em comédias, pois muitas vezes o narrador apressa a piada ou a atrasa, fazendo com que a pessoa com deficiência visual não siga o mesmo ritmo dos videntes presentes na sala. “O cego termina rindo antes ou depois a depender de como a piada ou situação engraçada foi descrita”, disse. No modo alemão de audiodescrever, é essencial que se dê detalhes, principalmente em cenas de briga, onde geralmente só se ouve barulhos. Benecke também atentou para o cuidado na hora de utilizar termos técnicos. “Escreva de forma clara e simples. Se for usá-los, explique primeiro. A depender do gênero, é importante dizer termos técnicos, como por exemplo no documentário. O importante é que esse termo seja explicado primeiramente, para depois ser usado no resto do filme”, frisou.

Outra precaução citada por Benecke é evitar dizer “aqui nós vemos…”, pois é ofensivo para o público com deficiência visual por justamente eles não verem.  Um ponto interessante da oficina foi a discussão sobre o uso de pronomes. Por exemplo: na frase “ele vai até a cozinha”, é importante que o público saiba a quem o pronome “ele” se refere. “É preferível que se repita o nome da personagem, para que seja claro para o público a quem o pronome se refere”, disse o Dr. Benecke, que prefere sempre descrever a pessoa primeiro até que seu nome seja dito por alguém dentro do filme. “A exceção vai para personagens muito famosos. Você não precisa dizer que Hitler é um cara baixinho com um pequeno bigode e cabelo engraçado – quando alguém como ele aparece, é possível dizer quem é sem descrever”, ressalta.

O segundo dia da oficina foi finalizado com uma breve introdução a um novo conceito na audiodescrição: a audiointrodução, que funciona como um trailer para cegos – a pessoa pode saber sobre o filme e ouvir uma pequena introdução sobre ele antes do filme começar através de sites como www.audiointros.org. A iniciativa se originou no teatro e está chegando agora no cinema. Também foi feito um segundo exercício com uma cena do filme Vor Der Morgenröte, drama franco-austríaco-alemão de 2016 que conta a história do escritor austríaco de origem judaica Stefan Zweig, que viaja para a América do Sul para fugir do nazismo na Europa. 

(Foto: Divulgação/Olavo Rosa)

Benecke contou para o CCBA como a audiodescrição funciona na prática em seu país. “Na Alemanha, as companhias cinematográficas que recebem financiamento público na realização de seus filmes (a maioria delas) precisam produzir também legendas para pessoas com deficiência auditiva ou pessoas com baixa audição e audiodescrição para pessoas com deficiência visual ou com baixa visão”, disse. “Como alguns cinemas não têm equipamento, as audiodescrições vão para um app gratuito, o Greta. Você faz o download da audiodescrição em casa e no cinema ela é sincronizada e pode ser ouvida, porque o smartphone sincroniza com o filme. Infelizmente, as companhias que não são obrigadas a produzir audiodescrição não têm seus filmes audiodescritos no app, pois preferem não pagar”, disse.

O especialista também afirmou estar muito feliz com o resultado do workshop no Brasil. “O público brasileiro é muito inteirado na discussão sobre a audiodescrição, são profissionais ambiciosos, engajados, é simplesmente muito bom trabalhar com pessoas assim, que entram no debate, fazem muitas perguntas. Foi um ótimo workshop. É bom discutir o resultado dos exercícios que eles estão realizando durante o workshop”, disse.

O consultor Felipe Monteiro, da cidade de Rezende (interior do Rio de Janeiro), estava presente no workshop e também adorou a experiência. “O workshop foi muito interessante. Foi uma ótima vivência porque muitas vezes a gente tem dúvidas, pensando se estamos indo pelo caminho certo, se nossas incertezas e inseguranças têm algum fundamento. Aí chegando num congresso como esse, vemos que outras pessoas também passam por essas mesmas dificuldades. Então é nessa troca de informações, principalmente com pessoas de outra cultura, que a gente vê se estamos no caminho certo”, disse Felipe, que também é músico, professor de música e pedagogo.

“Por conta da minha deficiência visual, que tem um pouco mais de 3 anos, comecei a ter contato com a audiodescrição. Disseram que eu tinha perfil de consultor e resolvi fazer cursos na área. Trabalhei com a Eliana Franco e sua empresa Franco Acesso, fizemos um projeto de acessibilização no Museu das Telecomunicações, no Flamengo (RJ)”, conta Felipe. “Gostei do jeito alemão de audiodescrição e acho que é muito parecido com o que fazemos por aqui, porque a Eliana Franco aprendeu com ele, e como eu a considero minha mentora na audiodescrição, já sentia através dela a influência do Dr. Bernd Becker”, disse o consultor.

ABERTURA DO 3º ENCONTRO (INTER)NACIONAL DE AUDIODESCRIÇÃO LOTA AUDITÓRIO DO PORTO DIGITAL

Com auditório cheio, a abertura do evento contou com uma mesa redonda composta por Rodrigo Machado, coordenador-geral de acessibilidade na Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência; Antônio Muniz, representante da Secretaria do Audiovisual; Guillaume Ernst, do Instituto Francês; Adriana Di Donato, representante do Núcleo de Acessibilidade da UFPE; e Lara Ximenes, representante do diretor do Centro Cultural Brasil-Alemanha Christoph Ostendorf, que frisou o compromisso do CCBA com a inclusão pela acessibilidade e o desejo de contribuir novamente para o evento nos anos seguintes, além da vontade de aprendermos cada vez mais sobre o tema.

“Este ano, trouxemos o Dr. Bernd. Nas próximas edições, esperamos contribuir mais uma vez em aproximar a Alemanha e o Brasil em causas como essa”, afirmou em nome do CCBA.

Rodrigo Machado lembrou da importância de derrubar o mito de que não há pessoas capacitadas para trabalhar com acessibilidade no serviço público. Antônio Muniz corroborou com esta fala, destacando a luta pelo reconhecimento da profissão de audiodescritor no Recife. “É fundamental a inclusão pela acessibilidade no serviço público. No futuro, vai nascer forte e combativa a Associação de Audiodescritores no estado, para que as pessoas com deficiência não sejam deixadas de lado”, disse.

Em seguida, o Sr. Guillaume disse ver no evento uma forma de aproximar pessoas que muitas vezes são excluídas da arte. “A audiodescrição é de extrema importância para o mundo. Como ela começou a tão pouco tempo (anos 1970), eventos como esse garantem a evolução e continuidade da prática”, completou o representante do Instituto Francês. Já Adriana Di Donato finalizou a mesa comunicando que a Universidade Federal de Pernambuco vem planejando uma pós graduação em audiodescrição para o futuro, uma ótima novidade para os profissionais presentes no evento que moram em Pernambuco e no Nordeste.

No final da abertura, Lívia Motta e o americano Joel Snyder,convidado internacional do evento, realizaram uma tarde de autógrafos de seus livros “Audiodescrição na Escola: abrindo caminhos para a leitura do mundo” e “The Visual Made Verbal”, respectivamente. Paralelo ao 3º Encontro (Inter)Nacional de Audiodescrição, aconteceu o IV Festival de Cinema VerOuvindo, também organizado por Liliana Tavares, que exibiu filmes com audiodescrição e masterclasses sobre a AD no Cinema São Luiz, Cinema do Museu e Paço do Frevo.